O atentado contra a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, na noite de quinta-feira, 1º, despertou temores de retorno da violência política ao país e criou mais um foco tensão em uma sociedade marcada por constantes crises econômicas, políticas e sociais. Segundo analistas, o episódio ocorre em um momento crítico no país, que tenta combater uma das inflações mais altas do mundo, vê o aumento da pobreza e presenciou a condenação da própria Cristina a 12 de prisão por corrupção.
A polícia argentina prendeu um brasileiro por tentar atirar contra Cristina em frente à sua casa em Buenos Aires, enquanto cumprimentava militantes. O suspeito foi identificado como Fernando André Sabag Montiel, de 35 anos. Políticos aliados, opositores e líderes internacionais se apressaram em repudiar o ataque, considerado o mais grave na política recente da Argentina, e o presidente Alberto Fernández decretou feriado nacional para que os argentinos possam se manifestar nas ruas “em defesa da democracia”.
Analistas ouvidos pelo Estadão reforçam que o atentado marca um risco de radicalização da política argentina, que vê uma escalada da polarização em torno do kirchnerismo. “A política argentina está entrando em uma espiral de polarização e esperemos que isso não leve ao que chamamos na ciência política de radicalização, que é quando as intensidades políticas no racha entre o kirchnerismo e anti-kirchnerismo, se transforma em violência”, explica Facundo Galván, professor de ciência política da Universidade de Buenos Aires.
Porém, tanto aliados ao kirchnerismo quanto opositores já começam a fazer uso político do episódio, estes acusando Cristina de provocar um autoatentado com objetivo de ofuscar a recente condenação do Ministério Público e aqueles atribuindo a culpa à oposição e aos meios de comunicação por discursos de ódio contra a vice-presidente.
“O próprio presidente decretou feriado nacional fazendo um discurso muito infeliz dizendo que a mídia e os propagadores de ódio são os responsáveis [pelo ataque] mas isso é um tiro aos meios de comunicação opositores e aos líderes da oposição e não se faz uma autocrítica. O discurso de ódio é real e está nos líderes da oposição e nos meios de comunicação, mas o governo também propaga”, completa.
Galván chama atenção para o fato de que a violência política não é comum na Argentina desde os 70, durante o terceiro mandado de Juan Domingo Perón, e pode trazer uma escalada nos ataques até as eleições presidenciais de 2023 no país.
“A Argentina, há muito tempo, já disse ‘basta’ à violência e nisso há um consenso geral em todos os atores, de que não é através da violência que se resolve os os conflitos. Mas a realidade é que a virulência da discussão tem sido muito grande e inadvertidamente está incentivando alguns malucos”, concorda María Lourdes Puente, professora na Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina.
Segundo os analistas, embora a troca de farpas entre aliados e opositores de Cristina seja antiga, ela se acentuou depois do pedido de prisão e perda de seus direitos políticos por suposta corrupção em licitação de obras durante seu mandato como presidente (2007-2015). Manifestantes se reuniram em frente à cada da vice-presidente e houve repressão policial.
“A partir desta condenação se gerou uma grande mobilização em torno da casa particular da vice-presidente, primeiro foram os vizinhos acusá-la de ser ladra e se manifestar contra ela e depois se encheu de militantes”, relembra Galván. “A partir daí já houve todo um aparato de segurança ao redor da vice-presidente”. Até mesmo a segurança de Cristina virou outro motivo de racha, em uma discussão de quem seria a culpa pela vice-presidente estar tão exposta a um episódio violento.
Os analistas chamam atenção para o momento em que o ataque ocorre, quando a Argentina já tem uma profunda e longeva crise econômica para resolver, que acaba ofuscada por um ataque à figura mais central na política do país.