Pode ser difícil imaginar como duas pessoas podem estar unidas mesmo com 7.195 km separando-as. O potiguar José Jair da Silva, 46, mostra que é possível concretizar essa união através de um único gesto: a doação. No ano de 2008, o técnico em radioterapia decidiu se cadastrar como doador de medula através de uma campanha de doação organizada pelo Hemonorte, que acontecia no shopping da Zona Norte de Natal. O convite oficial para ser doador só chegou depois de 12 anos, quando Finley Hill, uma criança da pequena cidade de Worsenstershire, na Inglaterra, o achou.
José foi incentivado pela esposa a se cadastrar, mas foi a voz da filha de dois anos que o empurrou adiante. Ele já tinha demonstrado interesse em ser doador de órgãos antes, mas ainda não tinha doado medula. O processo foi simples. Primeiro, o cadastro é feito e depois o sangue é coletado. Esses dados ficam registrados no Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME). Não há convite para doar imediatamente. Então, durante anos, José manteve o registro atualizado com informações de endereço e contato corretas.
Só em outubro de 2019 recebeu o primeiro contato do REDOME. Apesar do tempo, o técnico afirma que foi invadido por alegria ao receber a notícia. Seu gesto de tantos anos havia tocado alguém. “Eu já estava feliz por ser doador. Eu chorei, eu ri, eu pulei de felicidade, tudo que tinha direito”, detalhou. No dia 31 do mesmo mês, deu prosseguimento aos demais exames para confirmar a compatibilidade com o receptor. Esses aconteceram no Hemonorte, em Natal.
Em seguida, José foi encaminhado para o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), no Rio de Janeiro, onde repetiu os exames. O instituto coordena os cadastros do REDOME e foi o responsável pelo procedimento de extração da medula óssea doada.
Até então, José não tinha ideia de quem receberia o transplante, pois o processo de doação acontece de forma anônima. Nem o doador, nem o receptor se conhecem. “Eu recebi somente a notícia de que seria potencial doador. Eu não sabia se era criança, se era adulto”, explica. O sigilo acontece para resguardar os dados de ambos, tanto doador, quanto receptor. “Não tem o contato diretamente com a família”, completa.
Ele só foi informado que seria doador internacional após equipe que fez a coleta do exame parabeniza-lo, no Rio de Janeiro. Sem entender o porquê das felicitações, ele questionou. Só então obteve resposta.“Quando eu cheguei lá no Rio para fazer os exames, todo mundo me dava os parabéns e eu não sabia o porquê, até que chegou na hora de coletar e uma das enfermeiras comentou: Ah, então é você que é o doador internacional”, conta. Só então ele teve acesso a mais detalhes.
Quando soube que seu receptor era uma criança, ele não segurou a emoção. “Foi aí que eu desabei mesmo. Eu disse: Pronto, agora vamos até o final. Não tem como voltar atrás”, conta. Só no dia da cirurgia a médica responsável pelo procedimento confirmou a idade e nacionalidade da criança. “Ela me confirmou alguns detalhes, que era uma criança de sete anos. Foi aí que ela me confirmou que era da Inglaterra”, disse. Esses foram os únicos dados disponibilizados para José.
Ao longo dos anos, continuou a ser examinado e, em 2018, precisou fazer uma biópsia cerebral. Então recebeu o segundo diagnostico: CLIPPERS, um distúrbio inflamatório do sistema nervoso central. Apenas em março de 2019 recebeu o diagnóstico correto. Então começou a luta contra uma doença autoimune rara chamada Linfohistiocitose Hemofagocítica. A doença é caracterizada pela desregulação do sistema imunológico, que reage de maneira “exagerada” provocando inflamação nos tecidos dos órgãos, como fígado e até cérebro.
Jo Hill explica que só então a família e os médicos foram capazes de começar o tratamento certo. “Nós tivemos o diagnóstico corretos e fomos capazes de iniciar o tratamento adequado para as condições dele”. Então, o transplante de medula óssea era a melhor chance de sobrevivência do seu filho, declara.
A doação
Então, o REDOME entra em cena. Dentre os 5 milhões de cadastrados no sistema brasileiro, foram selecionados cinco potenciais doadores, todos com 90% de compatibilidade. Em todo o mundo, estes eram os únicos compatíveis com Finley Hill. Jo conta que a família ficou muito feliz, mesmo não sabendo a identidade do doador. Era a única chance da criança e eles resolveram arriscar ao aceitar uma compatibilidade menor. “Era a melhor chance do Finn”, declara. A procura terminou em setembro, quando José decidiu aceitar ser doador.
Outra doação poderá ser necessária. “Infelizmente, os níveis do doador de Finley em seu sistema estavam caindo constantemente e pioraram quando ele teve Covid, então ele precisará de um outro transplante cedo”, explicou Hill. A doação de José está congelada, na Inglaterra e a família espera usá-la em breve.
O anonimato seguiu, também, para a família inglesa. “Pelos primeiros dois anos, tudo o que sabíamos era que ele era um brasileiro de 43 anos” explica. Só depois eles puderam trocar e-mail. “E depois que fomos capazes de trocar algumas informações, esperamos que José também quisesse nos conhecer tanto quanto queríamos conhecê-lo”, completa.
Ao longo de toda a busca, a história de Finley ganhou repercussão na Inglaterra. A família estava constantemente participando do programa de TV This Morning. “Nós estávamos correndo para fazer as pessoas se inscreverem e serem doadores. Nós fizemos tudo que pudemos para que as pessoas se registrassem”, explica. Atualmente, a Inglaterra só tem 2% de doadores registrados, o que dificultou as buscas.
A medida que a história ficou mais famosa, mais pessoas queriam conhecer o doador de Finn. Então, no dia 6 de junho de 2022, José recebeu o primeiro contato de uma das produtoras do programa This Morning. A ideia era promover um encontro entre o potiguar e os ingleses. Foi uma surpresa para a família Hill e uma aventura para José. “Não tínhamos ideia de que eles trariam José para a Inglaterra e que seríamos capazes de vê-lo”, disse Jo.
No dia 8 de julho José apareceu de surpresa no programa. Sua ida foi completamente planejada pela produção do show. A partir daí, um momento e grande felicidade se estabeleceu para o doador e receptor. José conta que ele se escondeu, fez um vídeo falando com a família para despistá-los. O vídeo foi exibido no canal e, só então, ele foi autorizado a entrar no cenário.
“Eu entrei tremendo. Parece que eu estou tranquilo, mas eu não estava”, conta José. Nesse momento, Finn corre, o abraça e agradece. Depois de alguns momentos, toda a família se abraça. Os apresentadores comentam que não tem como segurar as lágrimas. Ali se concretizava o ponto alto de uma história que começara 14 anos atrás, quando Finn não tinha nascido ainda. A criança agradece e diz que sem a ajuda de José, não estaria ali.
Ao contar seu lado da história na reportagem da TRIBUNA DO NORTE, Jo Hill se emociona mais uma vez. “Eu não posso agradecer o suficiente” Para eles e para José, é um momento eternizado, na memória, em fotos e em abraços. Eles ainda mantêm contato um com o outro e a família Hill faz planos de vir ao Brasil no futuro. E não poderiam deixar de vir agora que Finn Hill carrega sangue potiguar nas veias, o que é incomum, mas possível.